sexta-feira, 26 de junho de 2009

Discurso de uma despedida tardia

É verdadeiramente difícil ficar calado diante de tantas besteiras que circulam na mídia. Tenho evitado falar neste blog, pois tenho a sensação de que quanto mais há pessoas dando palpites sobre assuntos para os quais não têm autoridade o suficiente para falar, pior fica o quadro cultural desse país. Mas me incomoda profundamente a atenção que a mídia tem dado à morte desse tal “astro da música pop”. Lembro-me de que quando o Sivuca faleceu o sítio da UOL publicou uma pequena nota para informar sobre sua morte. A televisão mal falou do assunto. Recordo-me ainda de que este mesmo sítio informava sobre uma apresentação da sandy com uma foto em destaque, deixando bastante escondida a notícia sobre a morte do Sivuca. Vendo os jornais de hoje, eu fico me perguntando: qual é a importância que esse tal astro tem para a cultura brasileira? Ele, o pessoal do U2 e a Madonna de vez em quando aparecem ao lado de pobres e marginalizados, ou quando não, apelam para discursos demagógicos sobre pobreza e política. Acho que esse discurso tem um bom fundamento: eles precisam muito mais dos pobres e negros do que pobres e negros precisam deles. Ninguém faz arte exibindo miséria, fazendo vídeo em favelas. Isto é chamar o público de idiota, é ignorar as sutilezas da arte. Não tem sido nada estranho, contudo, que as atuais gerações já não vêm diferença entre Paulo Coelho e Machado de Assis, entre o quen quen quen e a música de Villa-Lobos, entre a caricatura e a realidade. Isto não acontece porque a verdadeira arte está morta;isto acontece porque ela tem sido negada cretinamente por emissoras de TV e outros meios de comunicação que manipulam as informações e tentam a todo custo transformar o espetáculo em arte. É unicamente a sociedade do espetáculo, o circo, que interessa à imprensa. E quando aparecem palhaços, como esse tal astro que faleceu esta semana, aí só fica faltando pão.

Segue abaixo uma entrevista com o mestre Suassuna. É de 96, porém bastante atual.

Abraços, amigos!



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Sertanejo da Paraíba radicado há décadas no Recife, Ariano Suassuna vai finalmente lançar, pela editora Record, um livro em que reescreve tudo o que produziu na vida. A tarefa se arrasta há anos. Não é para menos. Nesta entrevista, além de chamar de equivocados os que defendem a abertura dos portos ao "lixo cultural" estrangeiro despejado goela abaixo de países-satélites como o Brasil, ele faz uma lista dos artistas e escritores que realmente representam a cultura brasileira. Autor de peças como "Auto da compadecida" e do imerecidamente pouco conhecido romance "A pedra do reino", Suassuna, aos 69 anos, vem se dedicando a uma cruzada solitária em defesa de manifestações da criatividade popular.

A íntegra da entrevista

Há quem diga que quem defende a preservação da chamada "arte popular" defende a manutenção da pobreza. Porque, se tivessem acesso à educação, os artistas populares deixariam de produzir obras formalmente primitivas...

ARIANO SUASSUNA: Se realmente a opção fosse esta eu não teria duvida: seria melhor que a injustiça desaparecesse, mesmo que a arte popular desaparecesse com ela. Mas isso é um sofisma criado por por pessoas que detestam as manifestações populares da nossa cultura. Eu gostaria de refutar esse lugar-comum segundo o qual as obras da arte popular são necessariamente rústicas e primitivas. Veja-se, por exemplo, esta décima do cantador Dimas Batista, que poderia ter sido escrita por Calderón de la Barca: "Na vida material/ cumpriu sagrado destino:/ o Filho de Deus, divino,/ nos deu glória espiritual./ Deu o bem,tirou o mal, livrando-nos da má sorte".

Não é ingenuidade querer que a cultura brasileira seja preservada numa redoma à prova de influências externas, numa época em que as relações econômicas sofrem um processo radical de internacionalização?

SUASSUNA: Colocar a cultura brasileira numa redoma, além de impossivel, é indesejável, e eu venho afirmando isso há muito tempo. Em 1963, publiquei um artigo no qual dizia que a arte que se tornasse uniforme não se tornaria mais pura, e sim mais pobre. Em 1974, eu afirmava que somente fortalecendo o tronco negro, indígena e ibérico de nossa cultura é que qualquer coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos esmaga e nos massifica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma incorporação que nos enriquece. O que não posso aceitar é que brasileiros equivocados queiram que, em nome de nossa bela e fecunda diversidade, aqui seja acolhido também o lixo cultural, que é um subproduto da indústria cultural americana espalhado pelo resto do mundo, como se fosse coisa mais importante do ue os romances de Faulkner. Ou seja: não tenho nada contra Melville. Mas não venham exigir que eu ache que Michael Jackson e Madonna têm a mesma importancia que Melville ou Euclides da Cunha. Tenho pelo "lixo cultural" brasileiro horror igual ao que tenho por qualquer outro.

Você não acredita que manifestações culturais possam absorver criativamente influências externas ? Um violeiro que vê televisão não pode se enriquecer com as informaçõs que recebe?

SUASSUNA: Qualquer um se enriquecer com as informações que recebe. Eu leio jornais e vejo televisão. Os cantadores e violeiros nordestinos também. Nenhum de nós perde, com isso, a garra brasileira e o senso crítico e satírico.

Entre passar um fim de semana passeando com Woody Allen em Manhattan ou cavalgando com um vaqueiro no sertão da Paraíba, que opção faria?

SUASSUNA: Passear por Manhattan, com Woody Allen ou outra pessoa qualquer, é coisa coisa que não representa qualquer atrativo para mim. Nunca saí do Brasil, mas já que estamos no terreno das hipóteses, por que você não pensa em alguém melhor e num lugar melhor? Quanto à outra alternativa, não tenho mais a resistencia para sair por ai' afora, cavalgando.

Qual é a pior doenca do Brasil hoje?

SUASSUNA: Machado de Assis fez uma distinção definitiva entre o Brasil oficial e o Brasil real que, a meu ver, é o do povo, o do "quarto Estado". Nossas maiores doenças têm origem no Brasil oficial, e a cura só pode vir do Brasil real. O Brasil oficial é o problema. Ou, um pouco à moda de Unamuno: "Brasil é o problema, Brasil é a solucão".

Você ainda reclama das guitarras elétricas. Isso não é uma discussão superada desde os anos 60?

SUASSUNA: Vou mais longe, até. Esta e' uma discussão que não tem o menor interesse, desde muito antes. Nem nos anos 60 ela fez parte das minhas preocupações. Em música, gosto de Vivaldi, Scarlatti, Stravinsky, Erik Satie, José Mauricio, Villa-Lobos e Guerra Peixe. Mas, quando me entrevistam, fazem perguntas sobre guitarra elétrica, Michael Jackson e Orlando Silva. É por isso que apareço falando sobre pessoas sobre as quais não tenho o menor interesse. Nunca me viriam à lembranca se não me fizessem tais perguntas.

Você diz que não tem interesse por compositores como Caetano Veloso e Gilberto Gil, porque eles são influenciados pela massificação cultural americana. Não reconhece nenhuma contribuição desses compositores para a modernizaçào da MPB?

SUASSUNA: Por iniciativa minha, jamais fiz qualquer referência a Caetano Veloso e Gilberto Gil. As pessoas que me entrevistam é que fazem perguntas a respeito deles. Depois, na maioria dos casos, quando publicam as matérias,ficam me acusando de radical e intolerante por causa das respostas que dou, porque não costumo esconder nem disfarcar o que penso. Mas não gosto de falar mal de nenhum companheiro de trabalho, principalmente quando se trata de pessoas que antes estavam do nosso lado e depois passaram a emprestar seu talento ao outro.

Quem é o artista que, em qualquer área de produção cultural, melhor representa o Brasil?

ARIANO SUASSUNA: Nas artes plásticas, Aleijadinho, Francisco Brennand e Gilvan Samico. Nas cênicas, Antônio José da Silva, o Judeu; Martins Pena, Qorpo Santo e Artur Azevedo. Na literatura: Euclides da Cunha, Augusto dos Anjos. Na música, José Mauricio Nunes Garcia,Villa-Lobos, Guerra Peixe, Ernesto Nazareth, Capiba e Antônio José Madureira. No vídeo e no cinema, Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos,Vladimir Carvalho, Guel Arraes e Luiz Fernando Carvalho.

O senhor reclama de que "o patrocínio de multinacionais nos eventos é uma tentativa de adormecer a resistência de nosso povo e aviltar a cultura brasileira pelo suborno dos intelectuais". Quais são os patrocínios que o senhor considera suborno?

SUASSUNA: Recusei indicações para o Prêmio Shell e para o Sharp. Recusei-me a participar da Bienal Nestlé de Literatura. Não fiz isto para me exibir nem para incorrer em falta de fraternidade com escritores e artistas que não têm as mesmas idéias nem as condições que eu tenho. Tais condições me deixam à vontade para recusar. Por isso, peço licença para, de uma vez por todas, encerrar este desagradável assunto.

O "gosto médio", a que o senhor se refere com desprezo, é "pior do que o mau gosto". Quais são hoje os piores exemplos da vitória do "gosto médio" sobre a qualidade artística?

SUASSUNA: O gosto médio a que me refiro é ligado àquele mesmo lixo produzido pela indústria cultural de massas. É fácil identificar na produção cultural brasileira de hoje quem segue tais padrões ou com eles se acumplicia.

O senhor, que é secretário de um governador que se declara um intransigentemente nacionalista, gostaria de ser ministro de um presidente neoliberal?

SUASSUNA: Sou amigo do governador Arraes, mas só concordei em ser secretário porque acho que ele representa, no campo da política brasileira, o mesmo que eu procuro ser na cultura. O cargo tem me trazido muitas e ardentes alegrias. Mas está me obrigando também a fazer coisas que detesto, como viajar. Imagino o que não aconteceria como ministro, motivo pelo qual não exerceria tal cargo com nenhum presidente, neoliberal ou não.

Do que trata o livro que o senhor vem escrevendo há anos? Qual o impacto o senhor gostaria que o livro tivesse no meio literário brasileiro?

SUASSUNA: O livro, ainda sem título, é um romance que, se for concluído como pretendo, será uma espécie de revisão e recriação de tudo o que escrevi. Quanto ao "impacto", não tenho nenhuma originalidade. Gostaria que o livro tivesse boa aceitação de público e de crítica. Mas tenho consciência de que sou um escritor de poucos livros e de poucos leitores. Já ficarei feliz se meu corajoso editor não tiver prejuízo.

Se um violeiro o procurasse com uma guitarra, o que o senhor faria?

SUASSUNA: Um violeiro com uma guitarra na mão seria aquilo que, em Lógica, se chama uma contradição em seus próprios termos. Ele não seria mais um violeiro e sim um guitarrista. E provaria, com a nova opção, que nem como violeiro prestava.

[in O Globo, Prosa & Verso, 06.10.96]