sábado, 23 de maio de 2015

Rodrigo Gurgel - O que ler para se tornar escritor

Ângelo Monteiro - A poesia como chave de uma autobiografia interior [Con...

Rodrigo Gurgel - Como ler? [ConaLit]

A atualidade dessa entrevista é realmente incrível!

Quero meu país de volta

O poeta que passou trinta anos na Europa se diz horrorizado com o baixo nível, acha que o país regrediu e parte para a briga


Bruno Lúcio de Carvalho Tolentino, menino carioca de família aristocrática, gosta de dizer que é de um tempo em que rico não roubava. O avô foi conselheiro do Império e fundador da Caixa Econômica Federal e seus tios eram intelectuais, como os escritores Lúcia Miguel Pereira e Otávio Tarquinio dos Santos, além dos primos Barbara Heliodora, a crítica teatral, e Antonio Candido, o crítico literário. Ainda era analfabeto em português quando duas preceptoras, mlle. Bouriau e mrs. Morrison, o ensinaram a conversar em francês e inglês dentro de casa. Tolentino saiu do Brasil em 1964 e, no estrangeiro, ocupou-se de árvores genealógicas de origem erudita. Orgulha-se de ter filhos com mulheres descendentes do filósofo Bertrand Russell e do poeta Rainer Maria Rilke. O mais novo, Rafael, de 8 anos, nascido em Oxford, Inglaterra, onde o pai ensinou literatura durante onze anos, é filho da francesa Martine, neta do poeta René Char. Bruno publicou livros de poesia em inglês e francês. Em 1994, lançou no Brasil As Horas de Katharina, e no fim do ano passado mais dois, Os Deuses de Hoje e Os Sapos de Ontem - todos ignorados pela crítica, pelo público e pelos curiosos.
Aos 56 anos, já de volta ao Brasil, Tolentino tem feito força para tornar-se herdeiro do embaixador José Guilherme Merquior, intelectual de boa formação e polemista musculoso. Tem conseguido aparecer. Brigou com os poetas concretos, depois com o que considera máquina de propaganda de Caetano Veloso e sua turma. Em seguida, com os críticos literários e os filósofos, elevando ainda mais o tom numa entrevista publicada por O Globo, duas semanas atrás. Fora do país, Tolentino ensinou em Oxford, Essex e Bristol e trabalhou com o grande poeta inglês W.H. Auden. Conheceu celebridades como Samuel Beckett e Giuseppe Ungaretti. Horrorizado com a possibilidade de ver o filho mais novo crescendo em escolas que ensinam as obras de letristas da MPB ao lado de Machado de Assis, abriu fogo contra o que considera o lado ruim de sua pátria, como explica em sua entrevista a VEJA:



VEJA - Por que tantas brigas ao mesmo tempo? 

TOLENTINO - Para ver se o pessoal cai em si e muda de mentalidade. O Brasil é um país vital que está caindo aos pedaços. Não quero sair outra vez da minha terra, mas não posso ficar aqui sem minha família, que está na França. Não posso educar filho em escola daqui. 

VEJA - Por que não? 

TOLENTINO - Foi minha mulher quem disse não. Educar um filho ao lado de Olavo Bilac, última flor do Lácio inculta e bela, que aconteceu e sobreviveu, ao lado de um violeiro qualquer que ela nem sabe quem é, este Velosô, causou-lhe espanto. A escola que ela procurou para fazer a matrícula tem uma Cartilha Comentada com nomes como Camões, Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira e Caetano. O menino seria levado a acreditar que é tudo a mesma coisa. Ele nasceu em Oxford, viveu na França e poderá morar no Rio de Janeiro. Ele diz que seu cérebro tem três partes. Mas não aceitamos que uma dessas partes seja ocupada pelo show business. 

VEJA - Qual o problema? 

TOLENTINO - Minha mulher já havia se conformado com os seqüestros e balas perdidas do Rio, mas ficou indignada e espantada pelo fato de se seqüestrar o miolo de uma criança na sala de aula. Se fosse estudar no Liceu Condorcet, em Paris, jamais seria confundido sobre os valores do poeta Paul Valéry e do roqueiro Johnny Hallyday, por exemplo. Uma vez entortado o pepino, não se desentorta mais. Jamais educaria um filho meu numa escola ou universidade brasileira. 

VEJA - Não é levar Caetano Veloso a sério demais? Ele não é só um tema de currículo, entre tantos outros? 

TOLENTINO - Não. Ele está também virando tese de professores universitários. Tenho aqui um livro, Esse Cara, sobre Caetano, uma espécie de guia para mongolóides, e a mesma editora desse livro me pede para escrever um outro, sob o título Caetano Se Engana. É preciso botar os pingos nos is. Cada macaco no seu galho, e o galho de Caetano é o show biz. Por mais poético que seja, é entretenimento. E entretenimento não é cultura. 

VEJA - O que você tem contra a música popular? 

TOLENTINO - Se fizerem um show com todas as músicas de Noel Rosa, Tom Jobim ou Ary Barroso, eu vou e assisto dez vezes. Mas saio de lá sem achar que passei a tarde numa biblioteca. Não se trata de cultura e muito menos de alta cultura. Gosto da música popular brasileira e também da de outros países, mas a música popular não se confunde com a erudita. Então, como é que letra de música vai se confundir com poesia? 

VEJA - O senhor não está ressentido por ele ter assinado um manifesto contra um artigo seu sobre uma tradução do poeta Augusto de Campos? No fundo, parece que o senhor está querendo aparecer à custa deles. 

TOLENTINO - Não tenho ressentimento nem ciúme. Nem tenho nada contra quem assina manifesto. Se você vê um amigo seu brigando na rua, o mínimo que pode fazer é ir lá apartar. Foi o que ele fez no caso do Augusto de Campos. Só que assinou um cheque em branco. A princípio achei que ele tinha entrado de gaiato, e lhe dei o benefício da dúvida, sobre uma questão muito delicada de tradução e de cultura que ele não está capacitado para julgar. Nem ele nem Gal Costa. Que intelectuais são esses? Se os irmãos Campos não sabem inglês, imagine eles.

VEJA - Os poetas e tradutores Augusto e Haroldo de Campos não sabem inglês? 

TOLENTINO - Não sabem inglês, nem alemão, nem grego. Por exemplo, traduziram Rainer Maria Rilke e criaram a frase "ele tem um pássaro", que é literal, mas que em alemão quer dizer que alguém tem uma telha a menos, é meio doido. São péssimos poetas e péssimos escritores. Não sabem absolutamente nada do que alardeiam saber. 

VEJA - Por que só o senhor, e não outros críticos, diz essas coisas? 

TOLENTINO - Na República das Letras ainda estamos à espera das diretas já. A usurpação do poder legal por vinte anos deixou-nos seus legados nas patotas literárias que desde então controlam a entrada em circulação, ou a exclusão pelo silêncio, de livros, autores, obras inteiras. Nas redações dos jornais como nas universidades prevalece a censura, e o único critério para sancionar uma obra parece ser o bom comportamento do neófito, sua genuflexão aos ícones da hora. Nossa crítica suicidou-se matando o diálogo, o debate e a polêmica. Mascarados de universitários, esses anõezinhos conseguem dar a impressão de que a inteligência nacional encolheu, que em Lilliput só se sabe da cintura para baixo. Quem já ouviu falar de Alberto Cunha Melo, que vive escondido no Recife, e é nosso maior poeta desde João Cabral? São dele estas palavras: "Viver, simplesmente viver, meu cão faz isso muito bem". Mas José Miguel Wisnik ora é crítico, ora é letrista e compositor, portanto é catedrático. Os violeiros empoleiraram-se nas cátedras e Fernando Pessoa virou afluente da MPB. Não é à toa que até em Portugal os brasileiros viraram piada. Ouvi uma que provocava gargalhada logo à primeira frase: "Um intelectual brasileiro ia começar a ler Camões quando a banda passou e..." É preciso perguntar dia e noite: por que Chico, Caetano e Benjor no lugar de Bandeira, Adélia Prado e Ferreira Gullar? 

VEJA - Por que o senhor acha os críticos brasileiros ruins? 

TOLENTINO - O que os críticos disseram sobre meus trinta anos de poesia? Só, desonestamente, que minha poesia é arcaizante e não suficientemente progressista. Que eu, o escritor Diogo Mainardi e - como é mesmo o nome do marido da Fernandinha Torres? - o diretor Gerald Thomas somos figurinhas carimbadas porque somos amigos de gente famosa. Quer dizer, chamam a atenção para a pessoa e não para a obra. E toda pessoa é discutível. Eu sou meio apalhaçado mesmo. A minha biografia é interessante, meio cinematográfica, e assim é como se eu não tivesse escrito nada. Uma espécie de Ibrahim Sued das letras. 

VEJA - Mas o que aconteceu com os críticos para que se tornassem tão incapazes, na sua opinião? 

TOLENTINO - A crítica brasileira não existe mais. Cometeu um haraquiri muito bem pago. Trocou sua independência por cátedras e verbas. É uma gente venal, vendida, que controla as nomeações para as cátedras, bolsas e verbas. Vão se meter com um maluco como eu? Todos, de Roberto Schwarz a David Arrigucci, foram formados pelo meu primo Antonio Candido, que é um geriatra nato. 

VEJA - Caramba... Não sobra nenhum crítico brasileiro? 

TOLENTINO - Sobra, evidentemente, Wilson Martins, que não tem lá muito gosto poético, mas enfim... 

VEJA - O senhor também não sobra? 

TOLENTINO - Em vários sentidos. Não tenho onde escrever. Sou herdeiro, e me considero assim, da combatividade crítica de José Guilherme Merquior. Crescemos e fomos amigos juntos, tínhamos idéias convergentes embora nem sempre coincidentes. Quando ele morreu, em 1991, houve um grande suspiro de alívio entre nossos crititicos e poetômanos. Infelizmente ele era embaixador. Eu não sou embaixador de nada. Essa gente está morta de medo de que eu venha a ter uma tribuna. Não me importa ser celebrado lá fora. Não faço falta lá, há muitos outros como eu. Aqui, com esta independência, cultura, erudição e combatividade, não tem outro que nem eu. 

VEJA - Sem embaixada, o senhor vai ser só poeta? 

TOLENTINO - Minha obra poética está basicamente terminada. Escrevi poesia por mais de trinta anos e não conheço nenhum outro poeta, além de Manuel Bandeira, que tenha conseguido escrever bem além dessa média. A partir daí, decai. Estou transferindo o meu esforço para o ensaio. Falar, por exemplo, dos males que a ditadura causou ao país me parece cada vez mais um sintoma do que uma causa. É um sintoma do Febeapá, vem no bojo dele. A imbecilidade já crescia. A ditadura simplesmente institucionalizou a falta de respeito pela realidade, pelo próximo, pela legalidade. A verdade foi substituída pela verossimilhança, a literatura, pela imitação da literatura. 

VEJA - O senhor poderia dar exemplos disso? 

TOLENTINO - Foi Wilson Martins quem levantou essa idéia, ao dizer que as obras de Chico Buarque e Jô Soares eram imitações da literatura. Auden, o Drummond lá dos ingleses, também dizia algo parecido. A gente lia um cara e concluía que ele era muito ruim. Auden discordava, dizendo que ele era muito bom. "Faz a melhor imitação de poesia que já li", dizia. Parecia piada mas não era. 

VEJA - O senhor acha que a imitação é ruim? 

TOLENTINO - A imitação da literatura se dá quando se fecha no círculo de ferro na modernidade. Ela obriga o leitor a seguir moda, busca efeito imediato, como se tudo começasse por você, naquele momento. A verdadeira literatura está sempre acuando tudo que a precedeu. Quincas Borba, de Machado, contém toda a novelística russa, e também Balzac. Wilson mostrou com muita acuidade e mordacidade que os romances de Chico são uma reedição do nouveau roman, que já morreu. Agora morreu a última representante dele, Marguerite Duras. Conheci toda aquela gente do nouveau roman, Alain Robbe-Grillet, Michel Butor, e saí correndo. Chato existe em todo lugar, não só no Brasil. Mas Wilson foi injusto com a imitação do Jô. É uma coisa que não pretende ser mais do que aquilo mesmo, divertir. 

VEJA - Por que o senhor não vai ensinar o que sabe nas universidades? 

TOLENTINO - Só entro numa universidade disfarçado de cachorro ou levado por uma escolta de estudantes. Sou um vira-lata muito barulhento. Não vão me convidar para nada porque eu quero acabar com os empregos e mordomias deles. Quero que eles passem por todos os exames de Oxford para ver se sabem mesmo alguma coisa. 

VEJA - Então as universidades não servem para nada? 

TOLENTINO - A escola pública desapareceu. A fórmula de sobrevivência do país é a trilogia emprego público, de preferência com aposentadoria acumulada, condomínio fechado e plano de saúde. Esse é o apartheid construído por uma elite analfabeta e totalmente irresponsável que entregou nossa cultura. Nem estou falando da nossa classe média, que tem dinheiro para gastar em boates e shows e sair de lá gargarejando cultura. 

VEJA - O senhor tem acompanhado a produção intelectual das universidades brasileiras? 

TOLENTINO - O departamento de filosofia da Universidade de São Paulo nunca produziu filosofia nenhuma, não por inépcia ou preguiça, mas por um estranho espírito de renúncia parecido ao espírito de porco. Cultivavam a crença de que só poderia nascer uma filosofia no Brasil "ao término de um infindável aprendizado de técnicas intelectuais criteriosamente importadas", como diz um professor de lá. Mais urgente do que filosofar era macaquear os debates dos "grandes centros" produtores de cultura filosófica. O que significava tomar o padrão europeu do dia como norma de aferição do valor e da importância do pensamento local. Imaginando ou fingindo preservar a mente brasileira de uma independência prematura, o que os maîtres à penser da USP fizeram foi apenas incentivar a prática generalizada do aborto filosófico preventivo. Não espanta que, por quatro décadas, o "rigor" (com aspas) uspiano não produziu outro resultado senão o rigor mortis de uma filosofia que poderia ter sido o que não foi. 

VEJA - Mas José Arthur Giannotti escreveu um livro de filosofia, Apresentação do Mundo, que foi muito elogiado... 

TOLENTINO - É, ele escreveu um besteirol sobre Ludwig Wittgenstein saudado em suplementos de várias páginas como marco do nascimento da filosofia no Brasil. É uma audácia depois de Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Vicente Pereira da Silva e Olavo de Carvalho. Nós temos uma filosofia nativa, isso sem falar da filosofia de cunho religioso, teológico, que eu não vou citar porque sou católico e vão dizer que estou puxando a brasa para a sardinha da Virgem Maria. Passei cinco meses garimpando nas páginas daquele livro e não encontrei nada que não fosse uma leitura do que Wittgenstein acha da dificuldade lingüística de compreender a realidade. Isso a gente já sabe, a partir do próprio Wittgenstein. Uma filosofia nacional não tem nada a ver com isso. 

VEJA - Tem a ver com o quê? 

TOLENTINO - A cultura filosófica brasileira é quase nula. Nossos professores gastaram décadas lendo Marx, em vez de Husserl. Aqui só dá o tripé Kant, Hegel e Marx. E onde está a grande tradição escolástica que vai de Aristóteles a Husserl? Isso não é lido nem discutido aqui. Mas existe uma filosofia brasileira. Reale e Olavo de Carvalho, que não se formaram em lugar algum, não perderam tempo com essa estupidez. Foram estudar e aprender as tantas línguas que falam. Eu, quando tenho dificuldade com latim, grego ou alemão, é para eles que telefono. 

VEJA - O senhor não está exagerando, sendo duro demais? 

TOLENTINO - Não. Não passei nenhum dia aborrecido aqui. Sempre encontro gente inteligente. Quando cheguei à Europa, não tive nenhum complexo de inferioridade. É verdade que eu conheci em casa o que o Brasil tinha de melhor. Faço parte do patriciado brasileiro. E não via diferença entre Ungaretti e Manuel Bandeira, só de língua. Era a mesma coisa. Não havia um Terceiro Mundo na minha cabeça. Eu, quando pequeno, conheci Graciliano Ramos e Elisabeth Bishop. Só havia gente dessa categoria. 

VEJA - Dá a impressão de que só agora se começou a falar e a escrever besteira no país... 

TOLENTINO - O besteirol, se havia, estava lá longe, nos cantos. Hoje ele está no centro. Tem razões mercadológicas, de dinheiro. Os artistas devem ganhar muito, muito dinheiro, para ir gastar em Miami. Só não é possível que esses senhores usurpem a posição do intelectual. Eles são um formigueiro com pretensão a Everest. 

VEJA - Não é bom para o país ter um intelectual na Presidência da República? 

TOLENTINO - Votei no Fernando Henrique Cardoso porque era uma oportunidade única, desde Rui Barbosa, de ter um intelectual no poder. E o que ele fez na sua primeira entrevista coletiva? Citou Machado de Assis ou Euclides da Cunha? Não. Citou o mano Caetano. Uma coisa tão espantosa quanto Rui Barbosa, se tivesse ganho a eleição, citasse Chiquinha Gonzaga. O Brasil que eu conheci, e do qual me recordo vivamente, era um país de grande vivacidade intelectual, mesmo sendo uma província. Não estou sendo duro com o Brasil. Quero saber quem seqüestrou a inteligência brasileira. Quero meu país de volta.
 

Tô em dúvida, será que presta?


domingo, 17 de maio de 2015

Atendendo às solicitações...


GALO DE BIGODES 
(Do livro O imbecil coletivo - Olavo de Carvalho)

       Fernando Jorge, Vida e Obra do Plagiário Paulo Francis. O Mergulho da Ignorância no Poço da Estupidez, São Paulo, Geração Editorial, 1996.


       Já fiz algumas censuras graves à obra de Paulo Francis, e ele, que nem sequer me conhecia pessoalmente, respondeu com elogios a um livro meu. Conto isto para atestar que Francis é homem de invulgar grandeza de alma. Capaz de baixeza ocasional, como todos nós, mas capaz, como poucos, de confessá-la humildemente, em público, em livros cuja franqueza quase cândida faz deles perigosas armas oferecidas, com a graça generosa de um cavaleiro medieval, ao uso que bem entendam fazer delas os desafetos maliciosos que não lhe faltam.

     Voluntariamente desguarnecido, exposto à maledicência pelo jeito descuidado com que vai falando de si — e não raro dos outros — sem a menor reserva e num estilo tanto mais pessoal quanto mais espontâneo ( ao ponto de raiar às vezes a escrita automática ), Francis teve a coragem ou a imprudência de assumir, de uns anos para cá, o encargo de ser a voz discordante no coro unanimitário da nossa imprensa, onde o simples fato de não ser de esquerda é sério defeito moral.
     Condensando ainda mais o ódio de seus antigos companheiros de ideologia, ele ainda teve o desplante de desenvolver, personalizar e tornar definitivamente seu o estilo que ajudou a criar em O Pasquim, jornal que por um tempo simbolizou o espírito mesmo de uma geração inteira de intelectuais cariocas. Só Francis ousa ainda escrever nessa linguagem que um dia foi de todos, e creio que é isto o que mais lhes dói: ver sua língua comum arrancada e posta a serviço do outro lado.
Para completar, Francis tem sempre a candura de escrever o que lhe vai pela cabeça. Pronto a desdizer-se quando lhe apontam o erro — quantas vezes já não se penitenciou das coisas ruins que disse de Tônia Carrero e de Roberto Campos, só para citar dois casos —, abstém-se da mais elementar precaução de um jornalista visado pelos inimigos maliciosos, que é tentar se ler com os olhos deles um minuto antes de enfiar a matéria no fax.
     Nessas condições, não espanta que, após uma longa elaboração subterrânea de rancores e anseios de vingança, de súbito a ira maciça dos desafetos desabasse sobre ele de vários lados simultaneamente, como se obedecendo a um plano. Nem espanta que, nesse instante, os adversários buscassem menos refutar suas palavras — tarde demais — do que destruir a sua pessoa, atacando-o nos dois pontos onde um homem é mais vulnerável: nos sentimentos íntimos e nos meios de subsistência. Não querem, com efeito, desmenti-lo. Querem arrasá-lo psicologicamente, remexendo velhas chagas com o bisturi da malícia, e reduzi-lo à penúria e ao desemprego, indispondo contra ele seus empregadores.
      Por uma esclarecedora coincidência, no instante mesmo em que a Petrobrás encena contra Paulo Francis um artificioso processo na justiça norte-americana, vem à luz — porque emerge das trevas — o livro de Fernando Jorge, Vida e Obra do Plagiário Paulo Francis, sob os auspícios do editor Luís Fernando Emediato, um jornalista com relevante folha de serviços prestados ao establishment de esquerda.
      No que diz respeito ao processo, foi rejeitado, naturalmente, pela justiça norte-americana, resultando apenas num desperdício de dinheiro público com uma bravata inútil que um bom consultor jurídico teria recomendado evitar. Mas exigia de Francis uma reparação milionária, que em muitas vidas ele não poderia juntar.
      Quanto ao livro, seu propósito de deixar Francis sem emprego é declarado com todas as letras, em apelos eloqüentes e diretos aos proprietários de O Estado de S. Paulo e de O Globo para que não publiquem mais uma linha de sua autoria. Na gíria das redações, isto chama-se “pedir a cabeça” de um colega, e sempre foi tido como um dos mais sórdidos expedientes do profissional invejoso.
O livro é um primor de maledicência. Em quinhentas páginas ricamente ilustradas, cuja impressão não deve ter custado menos de vinte mil reais e que não cometerei a indelicadeza de perguntar quem financiou, o autor pretende demonstrar, alegadamente por meio de rigorosa pesquisa e crítica textual, que o colunista, além de plagiário e analfabeto, é obsesso sexual, complexado, rancoroso, vingativo, farsante, covarde, racista, nojento, fedido, cagão, vampiro, cornudo, pernóstico, safado, ladrão, abutre, desavergonhado, escroto, pulha e ademais peidorreiro —termo que o autor, decerto momentaneamente entorpecido pelos vapores intestinais de seu fétido personagem, grafa peidorento e com um r só. Tudo isso sic, e dito, segundo autor e editor, sem um pingo de ódio ou má-fé, mas com a maior isenção e por motivos estritamente científicos. Quintiliano, o padroeiro dos filólogos, deve estar exultante no seu nicho no Érebo, porque ninguém jamais apostou tão alto na capacidade probatória da ciência filológica.
       O editor, nas orelhas, garante que o resultado da pesquisa, “rigorosamente documentada”, é líquido e certo: a análise de Fernando Jorge deixa Paulo Francis “inteiramente nu diante dos leitores”. E esta nudez é, assegura Emediato, “bastante horrível” — uma expressão estranha que, se algo significasse, quereria dizer algo assim como “mais ou menos péssimo”.
      Mas a arte do filólogo não consiste apenas em colecionar palavras, e sim também em compreendê-las. O aguda sensibilidade semântica do autor e de seu editor somados já é perceptível no subtítulo, O Mergulho da Ignorância no Poço da Estupidez, onde, estando manifesto que o poço da estupidez, de que se trata, é a mente de Paulo Francis, não se entende quem mais poderia ser o mergulhador senão o pesquisador mesmo. A não ser que se refira também a nós, ignorantes convidados a assistir à sua audaciosa sondagem nas profundezas abissais da estupidez franciana, como turistas levados ao fundo da besteira oceânica pela mão de um mentecapto Virgílio submarino.
Ostentando já na capa esse ato falho, não é de estranhar que o livro constitua, no mais e em essência, um prodigioso esforço de pesquisa realizado por uma mente solidamente incapaz de captar o sentido do que lê.
     A começar pela palavra-chave. Quem quer que leve a sério a promessa do autor, de nos mostrar nas obras de Paulo Francis uma das mais assustadoras coleções de plágios da história universal, terá uma tremenda decepção. “Plágio”, segundo Fernando Jorge, é qualquer repetição de uma frase de domínio público sem a indicação do autor. Para ele, quem pronuncie as palavras “Ser ou não ser”, sem acrescentar “como dizia Shakespeare”, já é plagiário. Com base nesse critério, ele acusa Francis de plagiar Lênin (pelo uso das expressões “a doença infantil do comunismo” e “a lixeira da história”), Machado de Assis (“matamos o tempo; o tempo nos enterra”), Dante (“no meio do caminho da nossa vida”), John Donne (“por quem os sinos dobram”), Winston Churchill (“sangue, suor e lágrimas”), Luigi Pirandello (“assim é, se lhe parece”), o cineasta George Stevens (“assim caminha a humanidade”), Ibrahim Sued (“sorry, periferia”) e até mesmo Jesus Cristo (“Meu Reino não é deste mundo”). E assim por diante.
     Para o gosto literário de Fernando Jorge, incorre em pecado de plágio quem diz “Eppur si muove” sem acrescentar: “dizia Galileu”, ou “Ave Maria!” sem esclarecer em nota de rodapé: “segundo o arcanjo Gabriel”. À luz dessa regra, comete plágio Camões, ao abrir seu épico com as palavras “As armas e os barões”, em vez de “As armas e os barões, segundo Virgílio”. Machado de Assis, então nem se fala: “Musa, canta o despeito de Mariana...”, em vez de: “Musa, canta — diria Homero — o despeito de Mariana...” E Shakespeare, outro plagiário barato, escreve “Ser ou não ser”, em vez de “Ser ou não ser, disse Parmênides”, como seria decente. Mas, como ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão ( em tempo: segundo dizia Ali-Babá ), William Faulkner é apenas meio plagiário ao intitular seu livro O Som e a Fúria, em vez de O Som e a Fúria, apud Shakespeare. Em vista dessas considerações, sugiro que o título do romance de Ernesto Sábato, em prol da moralidade, seja corrigido de Abbadón, o Exterminador, para Abbadón, o Exterminador, cf. Apocalipse 9:10. Resumindo tudo mas não desejando incorrer por minha vez em delito de plágio, declaro alto e bom som: É soda, dizia Fócrates.
     Já ouvi muita gente criticar Francis pelo excesso de alusões e subentendidos com que exibe vaidosamente uma familiaridade um tanto atrevida com autores e livros. O que nunca vi, o que é novidade absoluta, é um crítico ser suficientemente pueril para supor que o colunista do Diário da Corte, ao escrever essas frases, quisesse passar por autor delas, contando com a incapacidade universal de perceber as alusões mais óbvias. Porém o mais fantástico não é que alguém tenha feito essa suposição: é que tenha acreditado piamente nela e empenhado anos de trabalho árduo para colecionar exemplos e mais exemplos que a ilustrassem, sem por um instante sequer chegar a perceber, nela, alguma coisa de incongruente, de anormal, de disforme, de maluco. Desde a História Secreta do Brasil de Gustavo Barroso, nenhum escritor brasileiro fez um esforço tão ingente para demonstrar, pelo método indutivo, que 2 + 2 = 5.
      Exemplos de “plágio” segundo o modelo descrito ocupam metade do livro de Fernando Jorge, um desses operosos colecionadores de miudezas, cuja meticulosidade beneditina só se iguala à sua perfeita ausência de discernimento na avaliação dos exemplares.
       Mas alguns exemplos fogem ao modelo, ampliando formidavelmente a definição já tão elástica. Constitui também plágio, segundo Jorge, usar o mesmo predicado e o mesmo verbo empregados por um outro autor, ainda que com tempo diverso e a propósito de diverso sujeito! Se Francis, escrevendo sobre política, diz: “As massas não sabem o que querem, mas sabem o que não querem”, é plágio, porque Ruy Castro, a propósito de história literária, escrevera: “Os modernistas... não sabiam o que queriam, embora soubessem perfeitamente o que não queriam”. Por esse mesmo critério, se escrevo “Fernando Jorge é plagiário”, estou plagiando Fernando Jorge, que antes de mim usou os mesmos verbo e predicado a propósito de Paulo Francis.
      Constitui ainda plágio, no entender de Fernando Jorge, o emprego, já não de frases inteiras ou de meias-frases sem sujeito, mas de simples figuras de linguagem de uso corrente como “bípede implume”, sem citação de autor. Tem de ser: “bípede implume, como dizia Platão”, “caniço pensante, como dizia Pascal”, e, acrescento eu, “cazzo, como dizia Dirty Harry”.
      Finalmente, é plágio, no conceito de Jorge, o uso de slogans publicitários sem citação de fonte. Neste livro inacreditável, em todos os sentidos do termo, Francis é acusado de plagiário por ter dito de passagem a frase “Ame-o ou deixe-o” sem esclarecer que se tratava de “um slogan do tempo do presidente Médici”. Mas, se isto é plágio, que diremos então daquele que comete o próprio Jorge, ao mencionar o mesmo slogan sem dar a referência do autor ( o então coronel Otávio Costa ) e sem esclarecer sequer que não se tratava de invenção original, mas de adaptação de America: love it or leave it! Nem vejo, nas presentes circunstâncias, como escaparei eu mesmo da acusação de plágio, ao citar por minha vez estas palavras sem referir o autor do original, que desconheço e continuarei desconhecendo pelos séculos dos séculos, não sendo suficientemente maluco para dedicar a essas coisas a atenção obsessiva que lhes consagra Fernando Jorge.
       Mas Jorge não denuncia somente os plágios, e sim também os erros. “São centenas”, segundo ele, “graves, imperdoáveis, de diversas espécies”. Dou um exemplo do rigor científico com que ele procede na sua apuração. Francis, escrevendo em 1993, cita a sentença a sentença “O Brasil não é um país sério”, atribuindo-a a Charles de Gaulle, que a teria dito durante a “guerra da lagosta” de 1962. Mentira grosseira, coisa de apedeuta, besteira intolerável, proclama Jorge, informando que, em 1979, o diplomata Carlos Alves de Souza, desmentindo o equívoco generalizado na imprensa, atribuiu a si mesmo a autoria da frase. Jorge nem de longe percebe que: 1o, Francis errou junto com a torcida do Flamengo e não há porque culpar seletivamente um só indivíduo por um erro que todos já vinham cometendo desde trinta anos antes; 2o, não se sabe sequer se é erro mesmo, sendo pura beatice tomar a declaração de Alves de Souza como verdade de evangelho, sem levar em conta a hipótese altamente plausível da mentira piedosa e diplomaticamente conveniente.
       Outro exemplo: “Não há país rico quente”, escreve Francis. “Leviano como sempre — apostrofa Jorge —, Paulo Francis expeliu uma grande mentira. E a República da África do Sul? E a Arábia Saudita? E o Catar? e o Omã, na entrada do Golfo Pérsico?”
       Bem, para saber se uma sentença é verdadeira ou falsa, é preciso antes conhecer o sentido dos termos que emprega. “País rico”, no artigo de Francis, significava país com alto PNB e grandes fortunas vicejando ao lado da miséria, ou país com um bom nível de vida para toda a população, país de Primeiro Mundo? Se a expressão foi usada no primeiro sentido, Francis de fato mentiu. Se foi usada no segundo, quem mente é Fernando Jorge. Ora, quem quer que leia habitualmente a coluna do Francis sabe o que ele quer dizer com “país rico”. E neste caso Jorge mente duas vezes: ao fingir que não sabe disso e ao ocultar do público que o rico Omã tem uma população de mais de 50 por cento de analfabetos, a próspera Arábia Saudita quase 40 por cento, e o opulento Catar tem pouco mais de um por cento de sua população nas escolas superiores — indicadores mais que suficientes para colocar esses países a léguas do Primeiro Mundo. Quanto a mim, não sei se há ou não país rico quente, e, sem ter pensado muito no assunto, a idéia de que não haja nenhum me parece até mesmo estranha; mas sei que os países quentes citados por Jorge não ricos no sentido de Francis.
       O mais notável é que Fernando Jorge declara que para escrever essas coisas empregou o melhor de si: “Gastei toda esta minha cultura, toda esta minha erudição, correndo o risco de ser chamado de pernóstico...” Prudentissimamente, o autor se deteve um segundo antes de acrescentar, ao inventário dos dons gastos na confecção do livro, a inteligência e o bom senso.
Finalmente, Jorge empenha-se na tarefa de reparar as injustiças cometidas por Francis. O método é simples: consiste em beatificar as vítimas. De Abraham Lincoln a Tarso de Castro, de Jarbas Passarinho a José Genoíno, todos os criticados no Diário da Corte ou nos livros de Francis surgem transfigurados por uma luminosa coroa de adjetivos: talentoso, honesto, competente, proeminente, brilhante, belo, adorável, maravilhoso, indulgente, compreensivo, bondoso, generoso, admirável. Mas não é só o rol de adjetivos que é extenso. Jorge faz listas exaustivas dos nomes de pessoas que ama, admira e venera, sobretudo nas redações de jornais, deixando a impressão de que ninguém nesse meio é ruim, só o Francis, e insinuando, de passagem, que cada uma dessas belas criaturas tem o direito e o dever de ambicionar para si o espaço do Diário da Corte. Põe em leilão o emprego do Francis e adula os concorrentes, incentivando-os a que façam seus lances. Mas tudo isto é, segundo assegura o editor, feito sem o mínimo de má-fé ou sentimentos ruins. No que diz respeito ao primeiro item, acredito: Jorge tem a coriácea boa-fé de um doido varrido, não duvida de uma só palavra do que diz e nem de longe imagina que possa haver algo de errado com a sua cabeça. Nem ninguém correrá o risco de avisá-lo, suponho. Muito menos o editor, a quem a demência do autor está rendendo os lucros — financeiros e políticos — de um pequeno succès de scandale.
       Quanto aos sentimentos, Jorge não os oculta: são tão elevados, aliás, que não poderia escondê-los à sombra da sua diminuta estatura. Eis um exemplo:
       “A minha metralhadora giratória, porém, não pára, continua a tratalar, a matracolejar, a engolir seus serpenteantes pentes de balas: róróróróróróróró... taratatatatatatatatatatatatatatatatatatat atatata...” ( não contei o número de “tas”, porque não tenho o empenho investigativo de Fernando Jorge ).
Pelo menos o uso desse instrumento — a metralhadora — o biógrafo admite possuir em comum com o biografado. No mais, dois escritores não poderiam ser mais diferentes: Francis, gordo, enorme, despreocupado, sempre rindo de si, desleixado no escrever e no citar, confiante na sua cultura, que é — segundo disse alguém que não lembro, mas que o Fernando Jorge há de descobrir nas suas fichinhas — aquilo que sobra no fundo de nós quando esquecemos tudo o que aprendemos. Jorge, miúdo, raquítico, nervoso, constipado talvez, como em geral os bibliotecários de ofício, meticuloso, jamais confiando na memória ( talvez por suspeitar, não sem motivos, que nada haja sobrado no fundo ), sempre remexendo os arquivos em busca de vírgulas para cravar suas minúsculas lâminas recurvas na pele dos desafetos incautos. 
       No capítulo das comparações animais, não sei que bicho seria Francis, fisicamente, pois o rinoceronte é demasiado taciturno, o hipopótamo demasiado preguiçoso, o urso demasiado astuto, o elefante demasiado grande. Profissionalmente, é decerto um tigre — o bicho temível que não se enturma e do qual todos querem distância, exceto os marajás quando se juntam em bandos para caçá-lo, prudentemente montados em elefantes estatais. Quanto a Jorge, não há, nesse ponto, dificuldade. Ele mesmo se qualifica de “um altivo galo de briga”. A julgar por sua aparência física, estampada em três retratos na página 306, e levando-se em conta especialmente o gogó e a crista, talvez tenha alguma razão, caso se admita a hipótese de um galo de bigodes. Mas isso não importa: galo ou galinha, para o tigre é tudo frango.
23/12/96



sexta-feira, 15 de maio de 2015

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Acho que esta seria uma boa sugestão para quem leu, mas não entendeu, O galo de bigodes, de Olavo de Carvalho. Faça de conta    que é o jogo dos "07 erros" e descubra qual é o gênero ausente nesta gravura.