domingo, 17 de maio de 2015

Atendendo às solicitações...


GALO DE BIGODES 
(Do livro O imbecil coletivo - Olavo de Carvalho)

       Fernando Jorge, Vida e Obra do Plagiário Paulo Francis. O Mergulho da Ignorância no Poço da Estupidez, São Paulo, Geração Editorial, 1996.


       Já fiz algumas censuras graves à obra de Paulo Francis, e ele, que nem sequer me conhecia pessoalmente, respondeu com elogios a um livro meu. Conto isto para atestar que Francis é homem de invulgar grandeza de alma. Capaz de baixeza ocasional, como todos nós, mas capaz, como poucos, de confessá-la humildemente, em público, em livros cuja franqueza quase cândida faz deles perigosas armas oferecidas, com a graça generosa de um cavaleiro medieval, ao uso que bem entendam fazer delas os desafetos maliciosos que não lhe faltam.

     Voluntariamente desguarnecido, exposto à maledicência pelo jeito descuidado com que vai falando de si — e não raro dos outros — sem a menor reserva e num estilo tanto mais pessoal quanto mais espontâneo ( ao ponto de raiar às vezes a escrita automática ), Francis teve a coragem ou a imprudência de assumir, de uns anos para cá, o encargo de ser a voz discordante no coro unanimitário da nossa imprensa, onde o simples fato de não ser de esquerda é sério defeito moral.
     Condensando ainda mais o ódio de seus antigos companheiros de ideologia, ele ainda teve o desplante de desenvolver, personalizar e tornar definitivamente seu o estilo que ajudou a criar em O Pasquim, jornal que por um tempo simbolizou o espírito mesmo de uma geração inteira de intelectuais cariocas. Só Francis ousa ainda escrever nessa linguagem que um dia foi de todos, e creio que é isto o que mais lhes dói: ver sua língua comum arrancada e posta a serviço do outro lado.
Para completar, Francis tem sempre a candura de escrever o que lhe vai pela cabeça. Pronto a desdizer-se quando lhe apontam o erro — quantas vezes já não se penitenciou das coisas ruins que disse de Tônia Carrero e de Roberto Campos, só para citar dois casos —, abstém-se da mais elementar precaução de um jornalista visado pelos inimigos maliciosos, que é tentar se ler com os olhos deles um minuto antes de enfiar a matéria no fax.
     Nessas condições, não espanta que, após uma longa elaboração subterrânea de rancores e anseios de vingança, de súbito a ira maciça dos desafetos desabasse sobre ele de vários lados simultaneamente, como se obedecendo a um plano. Nem espanta que, nesse instante, os adversários buscassem menos refutar suas palavras — tarde demais — do que destruir a sua pessoa, atacando-o nos dois pontos onde um homem é mais vulnerável: nos sentimentos íntimos e nos meios de subsistência. Não querem, com efeito, desmenti-lo. Querem arrasá-lo psicologicamente, remexendo velhas chagas com o bisturi da malícia, e reduzi-lo à penúria e ao desemprego, indispondo contra ele seus empregadores.
      Por uma esclarecedora coincidência, no instante mesmo em que a Petrobrás encena contra Paulo Francis um artificioso processo na justiça norte-americana, vem à luz — porque emerge das trevas — o livro de Fernando Jorge, Vida e Obra do Plagiário Paulo Francis, sob os auspícios do editor Luís Fernando Emediato, um jornalista com relevante folha de serviços prestados ao establishment de esquerda.
      No que diz respeito ao processo, foi rejeitado, naturalmente, pela justiça norte-americana, resultando apenas num desperdício de dinheiro público com uma bravata inútil que um bom consultor jurídico teria recomendado evitar. Mas exigia de Francis uma reparação milionária, que em muitas vidas ele não poderia juntar.
      Quanto ao livro, seu propósito de deixar Francis sem emprego é declarado com todas as letras, em apelos eloqüentes e diretos aos proprietários de O Estado de S. Paulo e de O Globo para que não publiquem mais uma linha de sua autoria. Na gíria das redações, isto chama-se “pedir a cabeça” de um colega, e sempre foi tido como um dos mais sórdidos expedientes do profissional invejoso.
O livro é um primor de maledicência. Em quinhentas páginas ricamente ilustradas, cuja impressão não deve ter custado menos de vinte mil reais e que não cometerei a indelicadeza de perguntar quem financiou, o autor pretende demonstrar, alegadamente por meio de rigorosa pesquisa e crítica textual, que o colunista, além de plagiário e analfabeto, é obsesso sexual, complexado, rancoroso, vingativo, farsante, covarde, racista, nojento, fedido, cagão, vampiro, cornudo, pernóstico, safado, ladrão, abutre, desavergonhado, escroto, pulha e ademais peidorreiro —termo que o autor, decerto momentaneamente entorpecido pelos vapores intestinais de seu fétido personagem, grafa peidorento e com um r só. Tudo isso sic, e dito, segundo autor e editor, sem um pingo de ódio ou má-fé, mas com a maior isenção e por motivos estritamente científicos. Quintiliano, o padroeiro dos filólogos, deve estar exultante no seu nicho no Érebo, porque ninguém jamais apostou tão alto na capacidade probatória da ciência filológica.
       O editor, nas orelhas, garante que o resultado da pesquisa, “rigorosamente documentada”, é líquido e certo: a análise de Fernando Jorge deixa Paulo Francis “inteiramente nu diante dos leitores”. E esta nudez é, assegura Emediato, “bastante horrível” — uma expressão estranha que, se algo significasse, quereria dizer algo assim como “mais ou menos péssimo”.
      Mas a arte do filólogo não consiste apenas em colecionar palavras, e sim também em compreendê-las. O aguda sensibilidade semântica do autor e de seu editor somados já é perceptível no subtítulo, O Mergulho da Ignorância no Poço da Estupidez, onde, estando manifesto que o poço da estupidez, de que se trata, é a mente de Paulo Francis, não se entende quem mais poderia ser o mergulhador senão o pesquisador mesmo. A não ser que se refira também a nós, ignorantes convidados a assistir à sua audaciosa sondagem nas profundezas abissais da estupidez franciana, como turistas levados ao fundo da besteira oceânica pela mão de um mentecapto Virgílio submarino.
Ostentando já na capa esse ato falho, não é de estranhar que o livro constitua, no mais e em essência, um prodigioso esforço de pesquisa realizado por uma mente solidamente incapaz de captar o sentido do que lê.
     A começar pela palavra-chave. Quem quer que leve a sério a promessa do autor, de nos mostrar nas obras de Paulo Francis uma das mais assustadoras coleções de plágios da história universal, terá uma tremenda decepção. “Plágio”, segundo Fernando Jorge, é qualquer repetição de uma frase de domínio público sem a indicação do autor. Para ele, quem pronuncie as palavras “Ser ou não ser”, sem acrescentar “como dizia Shakespeare”, já é plagiário. Com base nesse critério, ele acusa Francis de plagiar Lênin (pelo uso das expressões “a doença infantil do comunismo” e “a lixeira da história”), Machado de Assis (“matamos o tempo; o tempo nos enterra”), Dante (“no meio do caminho da nossa vida”), John Donne (“por quem os sinos dobram”), Winston Churchill (“sangue, suor e lágrimas”), Luigi Pirandello (“assim é, se lhe parece”), o cineasta George Stevens (“assim caminha a humanidade”), Ibrahim Sued (“sorry, periferia”) e até mesmo Jesus Cristo (“Meu Reino não é deste mundo”). E assim por diante.
     Para o gosto literário de Fernando Jorge, incorre em pecado de plágio quem diz “Eppur si muove” sem acrescentar: “dizia Galileu”, ou “Ave Maria!” sem esclarecer em nota de rodapé: “segundo o arcanjo Gabriel”. À luz dessa regra, comete plágio Camões, ao abrir seu épico com as palavras “As armas e os barões”, em vez de “As armas e os barões, segundo Virgílio”. Machado de Assis, então nem se fala: “Musa, canta o despeito de Mariana...”, em vez de: “Musa, canta — diria Homero — o despeito de Mariana...” E Shakespeare, outro plagiário barato, escreve “Ser ou não ser”, em vez de “Ser ou não ser, disse Parmênides”, como seria decente. Mas, como ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão ( em tempo: segundo dizia Ali-Babá ), William Faulkner é apenas meio plagiário ao intitular seu livro O Som e a Fúria, em vez de O Som e a Fúria, apud Shakespeare. Em vista dessas considerações, sugiro que o título do romance de Ernesto Sábato, em prol da moralidade, seja corrigido de Abbadón, o Exterminador, para Abbadón, o Exterminador, cf. Apocalipse 9:10. Resumindo tudo mas não desejando incorrer por minha vez em delito de plágio, declaro alto e bom som: É soda, dizia Fócrates.
     Já ouvi muita gente criticar Francis pelo excesso de alusões e subentendidos com que exibe vaidosamente uma familiaridade um tanto atrevida com autores e livros. O que nunca vi, o que é novidade absoluta, é um crítico ser suficientemente pueril para supor que o colunista do Diário da Corte, ao escrever essas frases, quisesse passar por autor delas, contando com a incapacidade universal de perceber as alusões mais óbvias. Porém o mais fantástico não é que alguém tenha feito essa suposição: é que tenha acreditado piamente nela e empenhado anos de trabalho árduo para colecionar exemplos e mais exemplos que a ilustrassem, sem por um instante sequer chegar a perceber, nela, alguma coisa de incongruente, de anormal, de disforme, de maluco. Desde a História Secreta do Brasil de Gustavo Barroso, nenhum escritor brasileiro fez um esforço tão ingente para demonstrar, pelo método indutivo, que 2 + 2 = 5.
      Exemplos de “plágio” segundo o modelo descrito ocupam metade do livro de Fernando Jorge, um desses operosos colecionadores de miudezas, cuja meticulosidade beneditina só se iguala à sua perfeita ausência de discernimento na avaliação dos exemplares.
       Mas alguns exemplos fogem ao modelo, ampliando formidavelmente a definição já tão elástica. Constitui também plágio, segundo Jorge, usar o mesmo predicado e o mesmo verbo empregados por um outro autor, ainda que com tempo diverso e a propósito de diverso sujeito! Se Francis, escrevendo sobre política, diz: “As massas não sabem o que querem, mas sabem o que não querem”, é plágio, porque Ruy Castro, a propósito de história literária, escrevera: “Os modernistas... não sabiam o que queriam, embora soubessem perfeitamente o que não queriam”. Por esse mesmo critério, se escrevo “Fernando Jorge é plagiário”, estou plagiando Fernando Jorge, que antes de mim usou os mesmos verbo e predicado a propósito de Paulo Francis.
      Constitui ainda plágio, no entender de Fernando Jorge, o emprego, já não de frases inteiras ou de meias-frases sem sujeito, mas de simples figuras de linguagem de uso corrente como “bípede implume”, sem citação de autor. Tem de ser: “bípede implume, como dizia Platão”, “caniço pensante, como dizia Pascal”, e, acrescento eu, “cazzo, como dizia Dirty Harry”.
      Finalmente, é plágio, no conceito de Jorge, o uso de slogans publicitários sem citação de fonte. Neste livro inacreditável, em todos os sentidos do termo, Francis é acusado de plagiário por ter dito de passagem a frase “Ame-o ou deixe-o” sem esclarecer que se tratava de “um slogan do tempo do presidente Médici”. Mas, se isto é plágio, que diremos então daquele que comete o próprio Jorge, ao mencionar o mesmo slogan sem dar a referência do autor ( o então coronel Otávio Costa ) e sem esclarecer sequer que não se tratava de invenção original, mas de adaptação de America: love it or leave it! Nem vejo, nas presentes circunstâncias, como escaparei eu mesmo da acusação de plágio, ao citar por minha vez estas palavras sem referir o autor do original, que desconheço e continuarei desconhecendo pelos séculos dos séculos, não sendo suficientemente maluco para dedicar a essas coisas a atenção obsessiva que lhes consagra Fernando Jorge.
       Mas Jorge não denuncia somente os plágios, e sim também os erros. “São centenas”, segundo ele, “graves, imperdoáveis, de diversas espécies”. Dou um exemplo do rigor científico com que ele procede na sua apuração. Francis, escrevendo em 1993, cita a sentença a sentença “O Brasil não é um país sério”, atribuindo-a a Charles de Gaulle, que a teria dito durante a “guerra da lagosta” de 1962. Mentira grosseira, coisa de apedeuta, besteira intolerável, proclama Jorge, informando que, em 1979, o diplomata Carlos Alves de Souza, desmentindo o equívoco generalizado na imprensa, atribuiu a si mesmo a autoria da frase. Jorge nem de longe percebe que: 1o, Francis errou junto com a torcida do Flamengo e não há porque culpar seletivamente um só indivíduo por um erro que todos já vinham cometendo desde trinta anos antes; 2o, não se sabe sequer se é erro mesmo, sendo pura beatice tomar a declaração de Alves de Souza como verdade de evangelho, sem levar em conta a hipótese altamente plausível da mentira piedosa e diplomaticamente conveniente.
       Outro exemplo: “Não há país rico quente”, escreve Francis. “Leviano como sempre — apostrofa Jorge —, Paulo Francis expeliu uma grande mentira. E a República da África do Sul? E a Arábia Saudita? E o Catar? e o Omã, na entrada do Golfo Pérsico?”
       Bem, para saber se uma sentença é verdadeira ou falsa, é preciso antes conhecer o sentido dos termos que emprega. “País rico”, no artigo de Francis, significava país com alto PNB e grandes fortunas vicejando ao lado da miséria, ou país com um bom nível de vida para toda a população, país de Primeiro Mundo? Se a expressão foi usada no primeiro sentido, Francis de fato mentiu. Se foi usada no segundo, quem mente é Fernando Jorge. Ora, quem quer que leia habitualmente a coluna do Francis sabe o que ele quer dizer com “país rico”. E neste caso Jorge mente duas vezes: ao fingir que não sabe disso e ao ocultar do público que o rico Omã tem uma população de mais de 50 por cento de analfabetos, a próspera Arábia Saudita quase 40 por cento, e o opulento Catar tem pouco mais de um por cento de sua população nas escolas superiores — indicadores mais que suficientes para colocar esses países a léguas do Primeiro Mundo. Quanto a mim, não sei se há ou não país rico quente, e, sem ter pensado muito no assunto, a idéia de que não haja nenhum me parece até mesmo estranha; mas sei que os países quentes citados por Jorge não ricos no sentido de Francis.
       O mais notável é que Fernando Jorge declara que para escrever essas coisas empregou o melhor de si: “Gastei toda esta minha cultura, toda esta minha erudição, correndo o risco de ser chamado de pernóstico...” Prudentissimamente, o autor se deteve um segundo antes de acrescentar, ao inventário dos dons gastos na confecção do livro, a inteligência e o bom senso.
Finalmente, Jorge empenha-se na tarefa de reparar as injustiças cometidas por Francis. O método é simples: consiste em beatificar as vítimas. De Abraham Lincoln a Tarso de Castro, de Jarbas Passarinho a José Genoíno, todos os criticados no Diário da Corte ou nos livros de Francis surgem transfigurados por uma luminosa coroa de adjetivos: talentoso, honesto, competente, proeminente, brilhante, belo, adorável, maravilhoso, indulgente, compreensivo, bondoso, generoso, admirável. Mas não é só o rol de adjetivos que é extenso. Jorge faz listas exaustivas dos nomes de pessoas que ama, admira e venera, sobretudo nas redações de jornais, deixando a impressão de que ninguém nesse meio é ruim, só o Francis, e insinuando, de passagem, que cada uma dessas belas criaturas tem o direito e o dever de ambicionar para si o espaço do Diário da Corte. Põe em leilão o emprego do Francis e adula os concorrentes, incentivando-os a que façam seus lances. Mas tudo isto é, segundo assegura o editor, feito sem o mínimo de má-fé ou sentimentos ruins. No que diz respeito ao primeiro item, acredito: Jorge tem a coriácea boa-fé de um doido varrido, não duvida de uma só palavra do que diz e nem de longe imagina que possa haver algo de errado com a sua cabeça. Nem ninguém correrá o risco de avisá-lo, suponho. Muito menos o editor, a quem a demência do autor está rendendo os lucros — financeiros e políticos — de um pequeno succès de scandale.
       Quanto aos sentimentos, Jorge não os oculta: são tão elevados, aliás, que não poderia escondê-los à sombra da sua diminuta estatura. Eis um exemplo:
       “A minha metralhadora giratória, porém, não pára, continua a tratalar, a matracolejar, a engolir seus serpenteantes pentes de balas: róróróróróróróró... taratatatatatatatatatatatatatatatatatatat atatata...” ( não contei o número de “tas”, porque não tenho o empenho investigativo de Fernando Jorge ).
Pelo menos o uso desse instrumento — a metralhadora — o biógrafo admite possuir em comum com o biografado. No mais, dois escritores não poderiam ser mais diferentes: Francis, gordo, enorme, despreocupado, sempre rindo de si, desleixado no escrever e no citar, confiante na sua cultura, que é — segundo disse alguém que não lembro, mas que o Fernando Jorge há de descobrir nas suas fichinhas — aquilo que sobra no fundo de nós quando esquecemos tudo o que aprendemos. Jorge, miúdo, raquítico, nervoso, constipado talvez, como em geral os bibliotecários de ofício, meticuloso, jamais confiando na memória ( talvez por suspeitar, não sem motivos, que nada haja sobrado no fundo ), sempre remexendo os arquivos em busca de vírgulas para cravar suas minúsculas lâminas recurvas na pele dos desafetos incautos. 
       No capítulo das comparações animais, não sei que bicho seria Francis, fisicamente, pois o rinoceronte é demasiado taciturno, o hipopótamo demasiado preguiçoso, o urso demasiado astuto, o elefante demasiado grande. Profissionalmente, é decerto um tigre — o bicho temível que não se enturma e do qual todos querem distância, exceto os marajás quando se juntam em bandos para caçá-lo, prudentemente montados em elefantes estatais. Quanto a Jorge, não há, nesse ponto, dificuldade. Ele mesmo se qualifica de “um altivo galo de briga”. A julgar por sua aparência física, estampada em três retratos na página 306, e levando-se em conta especialmente o gogó e a crista, talvez tenha alguma razão, caso se admita a hipótese de um galo de bigodes. Mas isso não importa: galo ou galinha, para o tigre é tudo frango.
23/12/96



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