sexta-feira, 3 de julho de 2015

A imitação da literatura - Por Olavo de Carvalho


O artigo de Wilson Martins sobre os “romancistas amadores” (O Globo, caderno Prosa & Verso, 10 de fevereiro) traz de volta uma distinção esquecida: a imitação da literatura não é literatura. A diferença é evidente: a literatura absorve, prolonga e busca superar a tradição universal da arte de escrever; a imitação da literatura, ignorando essa tradição copia os seus produtos mais em voga. É uma diferença de perspectiva histórica: em toda a autêntica obra literária está implícita, de certo modo, a evolução inteira da literatura. Na sua imitação, está embutido apenas o tecido das convenções e gostos contemporâneos, amputado do seu fundo histórico e tomado, abstratamente e no ar, como modelo supremo e final da imaginação humana. A literatura de imitação prende-nos na redoma de uma atualidade compressiva, separando-nos da humanidade que nos antecedeu.
Esta distinção é evidente, porém, somente a quem conheça a tradição literária, a quem, por um esforço de auto-educação, tenha se elevado a uma concepção historicamente fundada do universalmente humano. A quem esteja preso no círculo de ferro da atualidade, é invisível e inconcebível.
Mas a atualidade nos chama, cada vez mais, com o apelo potente do noticiário, do marketing, das modas que se sucedem com rapidez alucinante, ameaçando jogar para fora da comunicação cotidiano – e aprisionar num isolamento vagamente identificado com a marginalidade e a loucura – quem quer que se recuse a acompanhá-las. Atualizar-se, porém, não é somente se manter informado: é absorver novos pressupostos, que, embutidos na trama da linguagem, condicionam a possibilidade mesma da comunicação: os sentidos das palavras vão mudando em velocidade crescente, e com eles adquirimos novos sentimentos, novas reações, amoldando-nos, volens nolens, aos costumes do dia. Nossa comunicabilidade está na razão direta da nossa plasticidade, da nossa total ausência de princípios. Atualizar-se requer menos capacidade intelectual do que maciças doses de oportunismo, numa quantidade que só se pode fornecer à custa do sacrifício de outras aptidões, inclusive a de discernir o verdadeiro do falso, o bom do ruim e… a literatura da pseudoliteratura. E como a atualização vai exigindo cada vez mais dedicação integral, acaba por se tornar uma modalidade especial de educação, com seus catedráticos, seus pedagogos, suas normas, seus primeiros da classe e seus aprovados. É a educação jornalística, em oposição à velha educação humanística. Esta procurava dar ao homem uma visão do universal; aquela, inseri-lo no atual, ainda que à custa de privá-lo daquele recuo crítico ante o presente, que é condição prévia para se ascender a uma visão universal das coisas.

Ora, do ponto de vista da educação jornalística, a distinção entre literatura e pseudoliteratura, ou mesmo subliteratura, tende a se tornar cada vez mais irrelevante: um livro péssimo, pelos padrões da arte literária, pode ser muito mais significativo dos anseios da vida – das “aspirações do nosso tempo” – do que uma grande obra de arte. E, uma vez que a própria Constituição brasileira (Art. n. 216) definiu como patrimônio cultural o que quer que dê testemunho do que se passa neste país – fazendo abstração de quaisquer considerações de qualidade, estética, moral ou cognitiva –, a conclusão é que, graças a uma aliança entre poderes públicos, o mercado das comunicações e os profissionais da atualização, a vastidão do interesse momentâneo tende a se substituir, gradativa e inexoravelmente, a qualquer critério de valor universal, o literário incluso. Morto não fala, e a humanidade passada não é incluída nas sondagens de marketing.

Contribui para esse efeito o crescimento quantitativo da classe dos “produtores da cultura” – uma massa barulhenta que, cada vez mais, vai sendo formada no molde da cultura jornalística, desprovida de qualquer concepção mais universal, e imbuída da crença edificante de que sua missão precípua é ecoar – se possível vociferar – as sacrossantas “aspirações do nosso tempo”. Mas “nosso tempo”, por definição, não significa outra coisa senão o período em que uma aspiração continua em pauta nos debates do dia: é o tempo de duração das notícias. E quando a cultura, para ser notícia, tem de se reduzir a um eco das notícias, então a inteligência humana está sob a mais grave ameaça que já pesou sobre ela desde que a dispersão das cidades romanas isolou os homens em feudos distantes e mutuamente hostis.
Mais temível que o isolamento no espaço é a prisão no casulo do tempo: o primado da atualidade jornalística na criação da cultura é a consagração de um provincianismo temporal mais acachapante e embrutecedor do que qualquer provincianismo regional, por se camuflar nas pompas enganosas de uma falsa universalidade quantitativa, criada pelas redes de telecomunicação e informatização mundial. Pois a profusão dos dados à disposição do consumidor nem eleva sua inteligência nem amplia seu universo, desde que os valores pressupostos que enquadram a imagem do conjunto são sempre, em última análise, os da atualidade fechada em si mesma, que se torna despoticamente como padrão absoluto para o julgamento dos tempos e dos povos.
Não faltam teorizadores para dar uma legitimação “intelectual” ao estado de coisas. Dois neocretinos que filosofavam a revolta de maio de 68, Philippe Rivière e Laurent Danchin, propugnavam uma nova educação básica, em que a filosofia e a letras seriam substituídas por informática, marxismo e música pop. Idéias como essa penetraram mais fundo e estão mais vivas no Brasil do que em qualquer outro lugar do mundo: segundo o Prof. José Arthur Gianotti, a missão da arte é “fazer valer as vontades populares”. E segundo o próprio presidente da República, cultura é o mesmo que show business – um business altamente moral, sem dúvida, na medida em que condiciona seus lucros aos serviços que presta às “causas populares”. A medida – auto-atribuída, naturalmente – dos méritos adquiridos a serviço da causa pode avaliar-se pêra recente disputa de sambistas em torno das remunerações milionárias aos participantes do show de fim de ano da Prefeitura do Rio: no momento em que um sambista adquire o estatuto de glória nacional, acrescido da autoridade moral de defensor público do bem, para o qual toda remuneração é pouca e humilhante quando vem de fonte alheia à causa, quem é que tem força para expulsá-lo parahors de La littérature? Ante as “aspirações do nosso tempo”, literatura não é preciso; Chico Buarque é preciso. Pois se a arraia-miúda intelectual do show business assumiu quase que oficialmente as funções de pedagogia moral que outrora incumbiam aos religiosos, aos filósofos e aos homens de letras, é que a idéia mesma de cultura sofreu uma mutação da qual talvez não possa se restabelecer nunca mais: reduzida a uma síntese oportunística deshow business e agitprot, ela funde os prazeres do capitalismo aos lisonjeiros pretextos morais do socialismo, atendendo em toda a linha às “aspirações do nosso tempo”, entre as quais não se inclui aquela aspiração à universalidade dos valores espirituais, que está subentendida em toda grande literatura.

Deste modo, a distinção que Wilson Martins procura restaurar é válida e evidente para quem sabe do que ele está falando; mas a formação mental dos atuais “produtores de cultura” dirige-se exatamente a fazê-los se desinteressar cada vez mais por saber de que é que pessoas como Wilson Martins e o autor destas linhas estão falando. Para falar na linguagem deles: They don’t care about us. [10.2.1996]

Entrevistado pela TV Globo no dia 05 de maio de 1996, Caetano Veloso opôs ao diagnóstico de Wilson Martins a seguinte refutação: "Porcaria. Porcaria. Porcaria. Porcaria". Quod erat demonstrandum. Dou a mão à palmatória: nunca imaginei que Caetano fosse capaz de tamanho tour de force dialético. Se continuar evoluindo assim, ele logo estará limpando o bumbum sem ajuda da mamãe.




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