O
artigo de Wilson Martins sobre os “romancistas amadores” (O Globo, caderno
Prosa & Verso, 10 de fevereiro) traz de volta uma distinção esquecida: a
imitação da literatura não é literatura. A diferença é evidente: a literatura
absorve, prolonga e busca superar a tradição universal da arte de escrever; a
imitação da literatura, ignorando essa tradição copia os seus produtos mais em
voga. É uma diferença de perspectiva histórica: em toda a autêntica obra
literária está implícita, de certo modo, a evolução inteira da literatura. Na
sua imitação, está embutido apenas o tecido das convenções e gostos
contemporâneos, amputado do seu fundo histórico e tomado, abstratamente e no
ar, como modelo supremo e final da imaginação humana. A literatura de imitação
prende-nos na redoma de uma atualidade compressiva, separando-nos da humanidade
que nos antecedeu.
Esta
distinção é evidente, porém, somente a quem conheça a tradição literária, a
quem, por um esforço de auto-educação, tenha se elevado a uma concepção
historicamente fundada do universalmente humano. A quem esteja preso no círculo
de ferro da atualidade, é invisível e inconcebível.
Mas a atualidade nos chama, cada vez mais,
com o apelo potente do noticiário, do marketing, das
modas que se sucedem com rapidez alucinante, ameaçando jogar para fora da
comunicação cotidiano – e aprisionar num isolamento vagamente identificado com a
marginalidade e a loucura – quem quer que se recuse a acompanhá-las.
Atualizar-se, porém, não é somente se manter informado: é absorver novos
pressupostos, que, embutidos na trama da linguagem, condicionam a possibilidade
mesma da comunicação: os sentidos das palavras vão mudando em velocidade
crescente, e com eles adquirimos novos sentimentos, novas reações,
amoldando-nos, volens nolens, aos
costumes do dia. Nossa comunicabilidade está na razão direta da nossa
plasticidade, da nossa total ausência de princípios. Atualizar-se requer menos
capacidade intelectual do que maciças doses de oportunismo, numa quantidade que
só se pode fornecer à custa do sacrifício de outras aptidões, inclusive a de
discernir o verdadeiro do falso, o bom do ruim e… a literatura da
pseudoliteratura. E como a atualização vai exigindo cada vez mais dedicação
integral, acaba por se tornar uma modalidade especial de educação, com seus
catedráticos, seus pedagogos, suas normas, seus primeiros da classe e seus
aprovados. É a educação jornalística, em oposição à velha educação humanística.
Esta procurava dar ao homem uma visão do universal; aquela, inseri-lo no atual,
ainda que à custa de privá-lo daquele recuo crítico ante o presente, que é
condição prévia para se ascender a uma visão universal das coisas.
Ora, do ponto de vista da educação
jornalística, a distinção entre literatura e pseudoliteratura, ou mesmo
subliteratura, tende a se tornar cada vez mais irrelevante: um livro péssimo,
pelos padrões da arte literária, pode ser muito mais significativo dos anseios
da vida – das “aspirações do nosso tempo” – do que uma grande obra de arte. E,
uma vez que a própria Constituição brasileira (Art. n. 216) definiu como
patrimônio cultural o que quer que dê testemunho do que se passa neste país –
fazendo abstração de quaisquer considerações de qualidade, estética, moral ou
cognitiva –, a conclusão é que, graças a uma aliança entre poderes públicos, o
mercado das comunicações e os profissionais da atualização, a vastidão do
interesse momentâneo tende a se substituir, gradativa e inexoravelmente, a
qualquer critério de valor universal, o literário incluso. Morto não fala, e a
humanidade passada não é incluída nas sondagens de marketing.
Contribui
para esse efeito o crescimento quantitativo da classe dos “produtores da
cultura” – uma massa barulhenta que, cada vez mais, vai sendo formada no molde
da cultura jornalística, desprovida de qualquer concepção mais universal, e
imbuída da crença edificante de que sua missão precípua é ecoar – se possível
vociferar – as sacrossantas “aspirações do nosso tempo”. Mas “nosso tempo”, por
definição, não significa outra coisa senão o período em que uma aspiração
continua em pauta nos debates do dia: é o tempo de duração das notícias. E
quando a cultura, para ser notícia, tem de se reduzir a um eco das notícias,
então a inteligência humana está sob a mais grave ameaça que já pesou sobre ela
desde que a dispersão das cidades romanas isolou os homens em feudos distantes
e mutuamente hostis.
Mais
temível que o isolamento no espaço é a prisão no casulo do tempo: o primado da
atualidade jornalística na criação da cultura é a consagração de um
provincianismo temporal mais acachapante e embrutecedor do que qualquer
provincianismo regional, por se camuflar nas pompas enganosas de uma falsa
universalidade quantitativa, criada pelas redes de telecomunicação e
informatização mundial. Pois a profusão dos dados à disposição do consumidor
nem eleva sua inteligência nem amplia seu universo, desde que os valores
pressupostos que enquadram a imagem do conjunto são sempre, em última análise,
os da atualidade fechada em si mesma, que se torna despoticamente como padrão
absoluto para o julgamento dos tempos e dos povos.
Não faltam teorizadores para dar uma
legitimação “intelectual” ao estado de coisas. Dois neocretinos que filosofavam
a revolta de maio de 68, Philippe Rivière e Laurent Danchin, propugnavam uma
nova educação básica, em que a filosofia e a letras seriam substituídas por
informática, marxismo e música pop. Idéias
como essa penetraram mais fundo e estão mais vivas no Brasil do que em qualquer
outro lugar do mundo: segundo o Prof. José Arthur Gianotti, a missão da arte é
“fazer valer as vontades populares”. E segundo o próprio presidente da
República, cultura é o mesmo que show business – um business altamente
moral, sem dúvida, na medida em que condiciona seus lucros aos serviços que
presta às “causas populares”. A medida – auto-atribuída, naturalmente – dos
méritos adquiridos a serviço da causa pode avaliar-se pêra recente disputa de
sambistas em torno das remunerações milionárias aos participantes do show de fim
de ano da Prefeitura do Rio: no momento em que um sambista adquire o estatuto
de glória nacional, acrescido da autoridade moral de defensor público do bem,
para o qual toda remuneração é pouca e humilhante quando vem de fonte alheia à
causa, quem é que tem força para expulsá-lo parahors de La littérature? Ante as
“aspirações do nosso tempo”, literatura não é preciso; Chico Buarque é preciso.
Pois se a arraia-miúda intelectual do show business assumiu
quase que oficialmente as funções de pedagogia moral que outrora incumbiam aos
religiosos, aos filósofos e aos homens de letras, é que a idéia mesma de
cultura sofreu uma mutação da qual talvez não possa se restabelecer nunca mais:
reduzida a uma síntese oportunística deshow business e agitprot, ela
funde os prazeres do capitalismo aos lisonjeiros pretextos morais do
socialismo, atendendo em toda a linha às “aspirações do nosso tempo”, entre as
quais não se inclui aquela aspiração à universalidade dos valores espirituais,
que está subentendida em toda grande literatura.
Deste modo, a distinção que Wilson Martins
procura restaurar é válida e evidente para quem sabe do que ele está falando;
mas a formação mental dos atuais “produtores de cultura” dirige-se exatamente a
fazê-los se desinteressar cada vez mais por saber de que é que pessoas como
Wilson Martins e o autor destas linhas estão falando. Para falar na linguagem
deles: They don’t care about us. [10.2.1996]
Entrevistado pela TV Globo no dia 05 de maio de 1996, Caetano Veloso opôs ao diagnóstico de Wilson Martins a seguinte refutação: "Porcaria. Porcaria. Porcaria. Porcaria". Quod erat demonstrandum. Dou a mão à palmatória: nunca imaginei que Caetano fosse capaz de tamanho tour de force dialético. Se continuar evoluindo assim, ele logo estará limpando o bumbum sem ajuda da mamãe.
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