Estado - O senhor foi o
crítico que mais tempo resistiu ao combate, mais que Tristão de Athayde, Sérgio
Buarque, Álvaro Lins, Sérgio Milliet.
Wilson Martins - Tenho mais tempo do que qualquer um. Aliás, substituí o Sérgio
Milliet porque ele andava enfadado de fazer crítica. Sou o mais antigo, que é
uma maneira delicada de dizer "o mais velho".
Estado - O senhor sentiu-se respeitado por outros críticos?
Wilson Martins - Depende. O José Ramos Tinhorão de vez em quando me dava uma
alfinetada, levei várias no penúltimo livro dele sobre a música no romance
brasileiro. Duas páginas em seguida ele concordava comigo, ficou empatado. De
outros críticos, como Sérgio Milliet e Antonio Cândido, fui amigo pessoal. Foi
Álvaro Lins quem recomendou meu primeiro livro de crítica para a editora José
Olympio. Sérgio Buarque eu só conhecia de vista.
Estado - O senhor não se dava com a esquerda brasileira?
Wilson Martins - Por temperamento, sempre me considerei eqüidistante tanto da
esquerda como da direita. Mas àquela altura não ser de esquerda significava ser
de direita, ninguém falava mais nele. Não era integralista, escapei por milagre
de ser comunista, mas nenhum membro do Partido Comunista falava comigo. Como
morava em Curitiba, consegui não me agregar a um grupo. Mas uma pessoa
independente acaba malvista pelos dois lados.
Estado - O senhor acha que só manteve essa Independência por ser do Paraná?
Wilson Martins - Eu a teria mantido em qualquer lugar, não sou de me apaixonar
nem por partidos nem por ídolos de futebol. Um amigo dizia que eu era frio,
seco.
Estado - O senhor concorda?
Wilson Martins - Ao contrário. Sou emotivo e sorridente, mas essa condição de
lobo da estepe me convém.
Estado - É a única maneira de ser um crítico independente?
Wilson Martins - É. A crítica é uma arte difícil, são poucos os que ficam na
história literária. Fora disso, o crítico estará sempre agregado ou a uma corrente
de pensamento ou a um grupo, o que vicia o julgamento. Não há nada mais fácil
do que a crítica para aqueles que se acreditam críticos.
Estado - A escritora francesa Marguerite Duras nunca reconheceu na crítica um
livro que havia lido, e só se guiava pela opinião de amigos em quem confiava.
Wilson Martins - Não é um crítico que forma opinião. É um conjunto de pontos de
vista. Um crítico é usado por certa camada da população que tem os mesmos
gostos, identidade e ideologia. Os que pertencem a um campo diferente não se
reconhecem nele. Pessoas que se dizem guiar pela crítica oral estão cometendo
um erro de perspectiva: porque os amigos leram as críticas. A crítica oral é
poderosa e o que se acaba formando é a média de opinião.
Estado - Qual o crítico, entre os mais novos, que o senhor respeita?
Wilson Martins - Lastimo, e é feio o que vou dizer. Mas ela não existe. A
crítica propriamente dita desapareceu, aqueles longos estudos de rodapé estão
sepultados, suplementos culturais de hoje publicam resenhas, elegem milhares de
gênios, um ou outro artigo mais sério a respeito de um autor, mas dentro da
perspectiva do novo jornalismo, fundado nas imagens, nas fotos, nos desenhos e
nos títulos. Quanto menos texto, melhor.
Estado - Uma espécie de jornalismo videoclipe?
Wilson Martins - Exatamente. Tanto que substituíram o título Suplemento
Literário por Suplemento de Cultura. Querem tratar de tudo, da música popular,
do teatro, das viagens.
Estado - Quem o senhor considera um bom jornalista de opinão?
Wilson Martins - Paulo Francis era. Certo, errado, mas com coragem, o que é uma
grande qualidade, e um apaixonado por seus pontos de vista. Um pouco impulsivo,
afirmava coisas que não tinha visto direito, mas assim mesmo incluo o Paulo
Francis na galeria dos grandes jornalistas deste século. Fiz muitas críticas
desfavoráveis sobre os romances dele e ele dizia que o único crítico que ele
respeitava no Brasil era eu.
Estado - O que o senhor considera um bom crítico?
Wilson Martins - T.S. Elliot dizia que para ser crítico só há um método, ser
muito inteligente. E quando diziam que os críticos erravam muito ele respondia:
"Os escritores também." Crítico não se faz por formação, ser crítico
é uma vocação. Espontânea, instintiva. Aposto no Miguel Sanches Neto. A
formação hoje também se faz assim mas há uma grande diferença de qualidade. O
ensino em geral decaiu muito e os professores universitários se encaminharam
para as teorias literárias, não para a literatura. Em vez de explicar os
livros, explicam teorias. Esses professores universitários escrevem longos
ensaios achando que escrevem uma crítica.
Estado - O que diferencia um ensaio de uma crítica?
Wilson Martins - Você faz o ensaio depois que a crítica foi feita, crítico é
aquele homem que lê o que acaba de sair e estica o pescoço para a guilhotina
num primeiro julgamento. Reafirma verdades impopulares. Penso numa velha frase
do Victor Hugo: "O crítico deve mostrar se o livro é bom ou ruim." Só
o tempo vai mostrar se ele tem ou não razão. Jorge Luis Borges declarou que
daqui a 50 anos, ao se falar nos escritores do século 20, serão mencionados
nomes que ninguém ouviu falar. Enquanto a posteridade não vem, o crítico é
visto com reserva.
Estado - Haroldo de Campos diz que o senhor, em geral, é um homem equivocado.
Wilson Martins - Ele diz que fiz cruzada contra o Paulo Leminski, e eu só
escrevi de passagem sobre ele. Considero Leminski um poeta lido erradamente e
supervalorizado. Mas a discordância com os irmãos Campos vem de longe.
Estado - Está na raiz da discordância sobre a poesia concreta?
Wilson Martins - Nunca fui entusiasta do concretismo, que transformou tanto a
mansão da crítica brasileira a ponto de torná-la inabitável - não existe
inventário puramente científico, como o do João Cabral de Mello Neto, sem
lirismo e retórica não há poesia. Mas a partir dos meus comentário os irmãos
Campos tornaram-se adversários de opinião, dizendo que escrevi uma história da
inteligência sem ser muito inteligente. Minha modéstia me obriga a concordar.
Darcy Ribeiro não dizia que A História da Inteligência é o livro mais burro que
já se escreveu no Brasil? São insultos. Raciocinar por meio de insultos faz efeito
mas não significa nada.
Estado - Darcy tinha uma presença, os irmãos Campos são meio gurus, isso não
lhe incomoda?
Wilson Martins - A partir de certo momento o crítico passa a encarar tudo como
jogo normal da vida literária. Os irmãos Campos dizem que eu ataquei Guimarães
Rosa, mas o próprio Rosa declarou nos escritórios da José Olympio que eu e
Antonio Cândido eramos os únicos críticos que aceitaria nos prefácios de seus
livros.
Estado - O senhor continua achando que foi Érico Veríssimo e não o Oswald de
Andrade o grande escritor de vanguarda do Brasil?
Wilson Martins - O Érico é o grande injustiçado desse período todo. Já naquela
altura ele era considerado um burguês, um homem que não era de esquerda - ele,
aliás, passou o resto da vida tentando mostrar que era de esquerda, o mais
esquerdista de todos, ninguém aceitava. É um escritor esquecido. Agora, essas
reações e fantasias são de pessoas com raiva da história, que querem varrer o
Érico da história da literatura brasileira.
Estado - Há figuras como Jorge Amado, dos escritores que mais vendem fora do
País, e suas críticas não têm sido favoráveis.
Wilson Martins - As pessoas emburram como se eu escrevesse ofensas pessoais e
dizem que me contradigo quando gosto de um livro de um autor, e do seguinte,
não. Não escrevo sobre autores, escrevo sobre livros. Na crítica séria não há
autor, há somente o texto. Jorge Amado escreve há 60 anos, ao longo da vida
publicou livros bons e livros menos bons. Elogiei os bons, mas não recuei
quando o livro era ruim. Além disso, esteve durante uma grande parte da sua
carreira "medusado" pelo realismo socialista que estragou boa parte
do trabalho.
Estado - O senhor disse o mesmo do João Ubaldo, "medusado por Amado".
É um ataque ao populismo literário?
Wilson Martins - Não, é um artigo isento que estuda o caráter das obras dele.
Sempre me considerei um admirador da obra do João Ubaldo e o Jorge Amado,
apesar de tudo, sempre conservou comigo uma espécie de camaradagem literária.
Não é meu amigo, mas não passou para o insulto, salvo indiretamente, pequenas
coisas que a gente ouve aqui e ali. Se ele escrever outro livro, vou julgar
como se estivesse começando a carreira.
Estado - Aliás, do Antônio Callado o senhor sempre preferiu os livros do começo
de carreira.
Wilson Martins - Quem descobriu o Antônio Callado fui eu. Fiz o primeiro artigo
elogioso sobre o livro de estréia dele, Assunção de Salviano. Mas escrevi sobre
todos, e considerei Quarup dos grandes romances do nosso tempo, mas não posso
negar que Reflexos do Baile é uma obra inferior.
Estado - Como o senhor se defende dos autores brasileiros depois de afirmar que
o maior escritor vivo de língua portuguesa é José Saramago?
Wilson Martins - Não me defendo. Para mim, ele é e continua sendo. Quando declarei
isso, sabia que estava mexendo num vespeiro.
Estado - Esse vespeiro está bem vivo. O senhor não devolve as ferroadas?
Wilson Martins - Nunca devolvi. Quando acontece ser uma inverdade, esclareço,
mas não posso esperar que todo mundo goste de mim. Todo mundo gosta dos
críticos bonzinhos porque são anódinos.
Estado - Jô Soares reclamou quando o senhor disse que, ao pretender fazer um
romance policial, ele caiu no histórico em O Xangô de Baker Street.
Wilson Martins - Ele não, mas criei um caso com essa história e outra com o
romancinho daquele menino, filho do Sérgio Buarque.
Estado - Chico Buarque.
Wilson Martins - É um cantor popularíssimo, mas faz literatura de amador.
Estado - O Chico reagiu?
Wilson Martins - Ele não, mas o Caetano Veloso foi ao Fantástico na Globo dizer
que meu artigo era uma porcaria. Não reconheço no Caetano autoridade nenhuma
para julgar literatura, nem mesmo os meus artigos.
Estado - O senhor vê a literatura do Paulo Coelho como amador?
Wilson Martins - Paulo Coelho não é fenômeno literário. Do ponto de vista
literário ele não é nada. Como fenômeno, ele é sociológico. Responde a um
estado de espírito generalizado e faz sucesso no mundo inteiro. Pega parábolas
bíblicas e reescreve seculares lendas árabes, cola aquilo tudo e faz o livro.
Uma espécie de vidente. A injustiça é julgar isso como literatura.
Estado - Paulo Coelho diz que os críticos só gostam do que não vende.
Wilson Martins - Falsa impressão. Os críticos de certa categoria julgam os
livros por meio de um escalão. Entendo que alguns desses livros se tornem
complexos para quem só assiste à novela. A diferença é o nível intelectual.
Quantos mais rádios e geladeiras temos, menos número de palavras empregamos. Caminhamos
assim de volta para a floresta natal, carregados de apetrechos que nos
facilitam pular de um galho a outro.
Estado - Mas o senhor também criticou o Nélson Rodrigues, que era popular.
Wilson Martins - Popularíssimo, ficou mais ainda depois da biografia do Ruy
Castro que, na verdade, reinventou o Nélson, conferiu a ele uma estatura que
ele não tinha e que sua obra, marcada pela psicanálise amadora, não justifica.
É preciso esclarecer um dos grandes mal-entendidos deste século. O sucesso de
Vestido de Noiva deve-se à montagem do Ziembinski. As peças do Nélson são
provocativas, famílias com 15 adultérios, um caso a estudar acrescido da
reconstrução que o livro do Ruy Castro executou.
Estado - O senhor é contra biografias?
Wilson Martins - Biografias são um fenômeno, mas por enquanto estão muito
enevoadas, engolidas com muita facilidade pelos leitores brasileiros. Passamos
a encarar o Nélson pelo olhar do Ruy Castro. É como o Sábato Magaldi, que está
fazendo uma obra importante sobre o Nélson mas naquela base, tirando o que não
presta. Aí, o que sobra é muito bom. O tipo do julgamento que eu não consigo
compreender.
Estado - Quais os bons livros do momento?
Wilson Martins - O Brasil está sempre à espera de gênios e se esquece de que é
a literatura média de boa qualidade que cria a atmosfera intelectual, o caldo
de cultura de onde surgirá o grande crítico, o grande escritor. O Brasil louva
em excesso, superestima autores.
Estado - O senhor falou muito de escritores homens. A produção feminina não
anda grande coisa?
Wilson Martins - Tem Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Clarice
Lispector e a Maria Cristina Albuquerque. Em geral, não há uma grande produção
feminina ou feminista, o que tem aparecido no Brasil é muito reivindicativo do
tipo "faz anos que somos reprimidas". O que não deixa de ser verdade,
mas o problema não é reclamar, é aparecer uma boa obra literária. Se isso
acontecer, tanto faz que o autor seja homem, mulher, homossexual.
Estado - Autor ou o personagem?
Wilson Martins - Estão aparecendo livros e livros sobre personagens
homossexuais, que assumiram coletivamente na vida e na obra uma atitude
polêmica. Como se quisessem tornar o homossexualismo obrigatório. A verdade é
que também nesse caso não apareceu a grande obra. O amor homossexual parece um
mimetismo dos amores da literatura clássica.
Entrevista a O Estado de São Paulo
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