Claudio Leal
A morte do poeta Bruno Tolentino (1941-2007), em junho, ganhou um
tratamento protocolar da imprensa brasileira. A firmeza de sua poesia,
cuidadosamente organizada em vida, esbarra agora nos ressentimentos criados por
suas batalhas literárias. Depois do tempestuoso retorno ao Brasil, em 1993,
quando travou polêmicas com os poetas concretistas, sentiu os espaços serem
fechados. Era um maldito. Mas não havia insulto que não soubesse fundamentar.
Negada uma arena, transferiu o combate de professor aos auditórios de
província. Há três anos, Tolentino veio morar em Salvador, onde pretendia fechar
"um ciclo pessoal". Dizia isto com fumaças de enigmático. Em 1959,
desembarcara na Bahia para assistir à montagem da peça Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams,
dirigida por Eros Martim Gonçalves, então diretor da vanguardista Escola de
Teatro. Apaixonou-se por Anecy Rocha, irmã de Glauber, mas logo o espírito
protestante da família Rocha o afastou de sua "camélia".
Naquele ano, foi convidado pelo reitor da Universidade da Bahia, Edgard
Santos - ex-ministro da Educação de Getúlio Vargas -, a traduzir peças teatrais
do inglês para o português. Espírito inquieto, abandonou Salvador e, em 1964, o
próprio Brasil, seguindo vida intelectual pela Europa, de poeta reconhecido por
W.H.Auden e Saint-John Perse. Nesse exílio voluntário, ergueu a maior parte de
sua obra poética. A presença de Bruno em Salvador me parecia deslocada.
Retomava o garoto de 1959? Era um refúgio, ele argumentava, à estagnação
intelectual do Rio de Janeiro e de São Paulo. Na periferia, o debate podia
renascer e lançar lavas sobre os centros econômicos. Alugou um flat, em
Salvador, no bairro litorâneo de Ondina, e tratou de articular seminários no
Instituto Feminino da Bahia.
Lá o conheci, em julho de 2004. Analisou a crítica de Machado de Assis à
razão positivista, a perspectiva na pintura renascentista, a apostasia em
Carlos Drummond de Andrade e Eugenio Montale. Inquietava-o a substituição do
mundo-como-tal pelo mundo-como-idéia. Disparava: "Toda vez que o homem
usou ideologias para melhorar o mundo, ele o tornou um pouco pior. O Holocausto
nasceu de um conceito de melhoramento do mundo".
Um dia, apareceu com uma londrina capa de chuva. "Pensei que ia me
atrasar. Nisto, Salvador se parece com Londres: mesmo quando nos atrasamos, dá
para chegar no horário". Seu fluxo verbal era interminável, e tomava
atalhos. Recordava-se, a todo instante, dos tios Octávio Tarquínio de Sousa e
Lúcia Miguel Pereira, da elite intelectual do Rio. Octávio, biógrafo do
Império; Lúcia, de Machado de Assis. Deles herdou o tom respeitoso para falar
de "Dona Cecília (Meireles)" e "dr. Manuel (Bandeira)".
Se não se fazia entender, explicava pelo avesso, citando o poeta
espanhol Antonio Machado: "La verdad es lo que es,/ y
sigue siendo verdad/ aunque se piense al revés". Equilibrava
uma xícara aristocrática. Sorvia o chá e ria. O tio Octávio preferia chá
indiano. Bruno, naqueles dias, chá silvestre. E esgrimava: "São Paulo não
produziu nada de culturalmente relevante nos últimos 500 anos. Nenhum grande
poeta. Falam em Mário de Andrade... É o pior poeta brasileiro de todos os
tempos! E Ribeiro Couto, coitadinho". Faíscas saíam da língua. "Que
filósofo tem o Brasil além de Miguel Reale e Olavo de Carvalho?".
Trouxe a Salvador os romances seminais de Machado de Assis e se armou
para um seminário que pretendia organizar sobre o Bruxo. Em menino, ouviu
Graciliano Ramos levantar a voz aos tios: "Não admito que ninguém admire
mais Machado do que eu!". Assimilou a solenidade do nome. Na década de 50,
marcou, com o amigo José Guilherme Merquior, a leitura simultânea de Quincas
Borba. Sentiram uma insegurança em torno da temática e correram ao poeta
Ferreira Gullar. "Talvez seja um romance sobre a arte de escrever",
ouviram.
Revejo as semelhanças de espírito: Machado e Bruno desacreditavam
doutrinas, sem fugir da tradição. Curiosamente, ao expor seu plano de estudo,
ele desprezou o último livro de Machado. Protestei: "Por que você não
incluiu Memorial de Ayres? Há também uma construção romanesca". Ele torceu
o nariz - "Porque o Memorial de Ayres, como o nome diz, é um memorial. São
apenas anotações do conselheiro". Fiquei desapontado com a aparente
intolerância, mas logo veria que ele não andava em mão única. Na semana seguinte,
confessou-me: "Andei relendo o Memorial... Espantoso. Precisamos arranjar
uma forma de incluí-lo!".
Compromisso adiado, pois sua rotina de viagens - era um Rimbaud a
procurar um outro eu em toda parte - fez com que o acompanhasse à distância.
Até que me caiu em mãos seu último livro A imitação do amanhecer,
que concorre ao Prêmio Portugal Telecom. Meses depois, a notícia de sua morte.
Bruno morreu silenciado - e, no entanto, um impulso exigia que falasse. Espero
que sua poesia seja mais lida com o tempo, separada de sua personalidade solar.
Na última vez que o vi, caminhava por Ondina. O velho passo célere. Algo lhe
conferia tranqüilidade. "Naquela tarde um pássaro de garganta cortada/
afinal fez-me ver como a emoção separa/ e une tudo outra vez às vésperas do
nada". Que poeta sumiu naquela rua.
Claudio
Leal é
jornalista.
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